“Dos apupos ao jour de gloire…”, por Miguel Seabra (em Lille)
Haverá hoje mais um daqueles milagres que, no ténis, são mais passíveis de acontecer na Taça Davis do que em qualquer outra competição? O segundo dia veio dar mais carga emocional a uma final da Taça Davis que começou muito mal para os anfitriões – sobretudo graças aos dois principais vilões do dia, o presidente da Federação Internacional de Ténis e o jogador croata Mate Pavic.
Por Miguel Seabra, em Lille
O sábado acabou com o Stade Pierre Mauroy quase todo – quase, porque aqui o sector da claque croata faz de aldeia do Asterix… – a cantar em uníssono ‘A Marselhesa’. E o célebre segundo verso do hino francês clama que ‘le jour de gloire est arrivé’. E esse dia é hoje, até porque é o último dia da Taça Davis tal como a conhecemos, voltando-se a ouvir a Marselhesa antes do arranque dos encontros.
Espera-se uma jornada tenística à altura da circunstância e com momentos de glória que acontecerão obrigatoriamente para um ou para outro lado. Felizmente que tão histórica final não ficou decidida ontem. Após um primeiro dia sensaborão em que a Croácia asfixiou não só a concorrência no court mas também estrangulou os ânimos dos aficionados nas bancadas, a jornada de sábado proporcionou os dois melhores momentos da final da 107ª edição da Taça Davis – momentos esses completamente distintos mas igualmente simbólicos.
O primeiro foi uma vaia monumental a David Haggerty, aquando da entrega de um prémio no court à velha glória do ténis francês François Jauffret. O presidente norte-americano da Federação Internacional de Ténis tinha estado pouco antes à conversa com um pequeno grupo de jornalistas criteriosamente convocados (e em que os portugueses até estiveram em maioria de número!) e, face a toda a polémica envolvendo a mudança radical do figurino da Taça Davis sob o seu mandato, tive mesmo de lhe colocar a questão que já queria ter feito há algum tempo. “Alguma vez acorda a meio da noite e se pergunta a si próprio ‘o que é que eu fui fazer’?”, atirei. Ele sorriu e lidou bem com a situação, embora não tenha revelado muito mais do que o seu autoproclamado optimismo. Enfrentou ainda algumas questões mais apertadas e respondeu daquele modo que os americanos definem como sendo soft spoken, respondendo sem verdadeiramente responder e confessando profícuas conversações com os melhores tenistas mundiais durante o ATP Finals… que podem muito bem ser apenas ‘profícuas’ na cabeça dele, já que é “um eterno optimista”.
Durante a conversa, e por defeito profissional (sou também jornalista especializado em relógios), olhei para o relógio que ele tinha no pulso. Gostava de ter puxado o tema que tinha em mente à baila, mas entretanto o mini-debate foi concluído abruptamente devido à agenda do presidente. E o que gostava de ter salientado era precisamente o exemplo da Rolex, a marca de relógios que ele envergava no pulso. Porque o grande segredo do estatuto alcançado pela Rolex prende-se com o negócio da tradição, do qual Wimbledon se tem aproveitado quase até à exaustão. As pessoas podem achar piada à inovação, mas gostam de valores seguros e agarram-se à história. A Rolex e Wimbledon são especialistas em inovar e mudar, mas fazendo parecer que tudo continua na mesma: essa receita de sucesso não falha, mas David Haggerty não percebeu isso. Até deveria representar um bastião da tradição enquanto presidente da Federação Internacional de Ténis, mas assumiu o papel de reformador e será contestado até ao tutano. Não se brinca com os pilares da modalidade, porque o edifício corre o risco de desabar; a ITF tem de deixar o experimentalismo e a inovação para o ATP World Tour, enquanto zela pela tradição através dos eventos do Grand Slam e do WTA tour.
Tem-se falado muito da Taça Davis, mas convém colocar as coisas em perspetiva: Bjorn Borg deixou de jogar Taça Davis muito cedo na sua carreira e a sua ausência já então motivava debates sobre a competição em si. Ou seja:, há quarenta anos que se acusa a competição de não ter os melhores a jogar, isso já acontecia anteriormente. Há muitas décadas que se fala das complicações de calendário inerentes à programação da Taça Davis, com mudanças de piso de acordo com a vontade dos anfitriões a poderem perturbar o escalonamento de torneios dos melhores jogadores do mundo. Alguma coisa tinha de ser feito e é sintomático que, com Lille a distar apenas 100 quilómetros de Bruxelas, eu não veja aqui na sala de imprensa qualquer colega da imprensa belga. E que, por exemplo, a final não esteja a ser transmitida pela televisão em nenhum lado no Reino Unido – nem sequer online.
Para além dos assobios a Haggerty, o segundo grande (e principal, no plano competitivo) momento ocorreu quando a formação croata estava em desvantagem por 4-5 no quarto set do embate de pares; a servir para não perder o encontro, Mate Pavic subitamente viu-se em desvantagem por 0/40 após muita contemporização devido ao ruído do público e usou as próprias emoções para dar a volta à situação, ‘picando’ o público francês e depois ‘puxando’ pelos croatas. O modo como incendiou a arena com gestos para uns e para outros mostrou a sua inteligência emocional e permitiu-lhe anular os match-points. A França acabaria por ganhar esse set e o encontro minutos depois, no tie-break, mas aqueles momentos de drama mostraram perfeitamente o que é a Taça Davis, o que é representar um país, o papel das claques…
Por isso, nas conferências de imprensa que se seguiram, tantas vezes foi dito por todos que se tinham vivido momentos irrepetíveis. Porque foi o último dia exclusivamente dedicado ao encontro de pares. Porque foi o último encontro de pares da Taça Davis discutido à melhor de cinco sets. Porque se jogou no sistema de jogar em casa/jogar fora de casa.
Esperam-se momentos parecidos hoje. Para já, Yannick Noah escolheu substituir Jeremy Chardy por Lucass Pouille – jogador da zona de Lille que é aquele que verdadeiramente estará a jogar em casa, e que no ano passado garantiu neste mesmo estádio o ponto decisivo na final com a Bélgica.
Les jeux sont faits, le jour de gloire est arrivé.