Uma festa portuguesa, com certeza

Como bom português, Nuno Borges começou a sofrer e acabou a celebrar. Numa semana histórica para o ténis nacional, são cada vez mais as páginas de história a ser escritas em Roland-Garros, onde nunca se festejou tanto.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris

Diz-se, em jeito de brincadeira, que Paris é segunda maior cidade portuguesa. Sendo naturalmente uma hipérbole, não andará assim tão longe da verdade e não há dúvidas de que Roland-Garros é o mais português dos quatro torneios do Grand Slam.

Todos os anos, centenas de portugueses e luso-descendentes deslocam-se à Porte d’Auteuil. São frequentes as bandeiras, os gritos de incentivo e até alguns cânticos, intensificados pelo sucesso das últimas edições. Há comunidades maiores, mas o povo luso faz-se ouvir e não há jogador que possa queixar-se da falta de apoio estando a 1.800km de casa.

E porque as adeptos se juntaram vitórias, a 124.ª edição na catedral da terra batida tornou-se numa festa portuguesa.

Ainda o quadro principal não tinha começado e esta já se tinha tornado numa edição histórica para Portugal, com Henrique Rocha a passar o qualifying para se juntar a Nuno Borges e Jaime Faria no primeiro torneio do Grand Slam a contar com três portugueses na mesma grelha.

Ser bem-sucedido na fase de qualificação de um Major não é tarefa fácil, é aliás tantas vezes descrito por muitos dos protagonistas como “um dos feitos mais difíceis” deste desporto repleto de obstáculos, e uma vista de olhos aos registos nacionais comprova-o.

Fazê-lo ao somar dois dos três triunfos contra jogadores da casa, o último na ronda de acesso e com o adversário a servir para a vitória no terceiro set, ainda menos.

O portuense de 21 anos nasceu talhado para os grandes palcos e a campanha na cidade luz não surpreendende quem o acompanha de perto há muito, mas vale a pena contrariar uma certa naturalidade que surge como consequência dessa precocidade. Tal como em Bekkestua, onde em setembro último fez história ao tornar-se no primeiro português a vencer um top 10 na Taça Davis, também em Paris há uma carta de intenções a ser escrita por Henrique Rocha.

Não bastasse o sucesso no qualifying, prolongou-o ao brilhar na estreia em quadros principais e, depois de jogar cinco sets pela primeira vez na carreira, venceu um ex-top 20 com cinco títulos ATP no palmarés e, sobretudo, uma intensidade acima da média.

No dia em que se tornou no terceiro homem português mais novo a jogar o quadro principal de um Grand Slam (por apenas um dia não foi o segundo), Rocha passou a ser o oitavo a vencer a este nível e no quinto a fazê-lo em Roland-Garros. Indo mais longe, foi apenas o terceiro a consegui-lo em Paris como qualifier.

O sucesso de Rocha (joga a segunda ronda esta quinta-feira) foi ensanduichado pelos de Borges, que entre domingo e quarta-feira escreveu capítulos inéditos na nossa história.

Tudo começou com uma sofridíssima vitória na primeira ronda que, não fosse pelos contornos dramático, deixaria muito a desejar. Frente a um qualifier, o número um nacional começou frouxo, demorou a aquecer os motores e lá deu a volta ao anfitrião, aproveitando a quebra física de quem não está habituado a competir a este nível para rubricar o triunfo já depois da meia-noite, horário suficiente para tornar épico o que até então era exasperante. Tinha de ser assim, sofrido, como já fora a vitória anterior em Paris.

A verdade é que, ao resistir, o maiato tornou-se no primeiro português a recuperar de uma desvantagem de dois sets em torneios do Grand Slam, feito que deu a Portugal o 50.º triunfo a este nível em quadros principais masculinos.

Os dois dias de descanso que se seguiram não se sentiram no primeiro set da segunda ronda frente ao superfavorito Casper Ruud, finalista das edições de 2022 e 2023, mas depois… bem, depois tudo mudou.

O norueguês quebrou fisicamente quando o português já retaliava e, se no segundo set o disfarçou, nos seguintes já não conseguiu esconder as dificuldades em deslocar-se lateralmente. Impávido e sereno, Borges teve uma tranquilidade rara em momentos como este, resistiu à tendência de cair no exagero e entrou num estado de graça que antecipou a história antes mesmo de ser escrita.

A estreia no Court Suzanne-Lenglen acabou em vitória, e que vitória: ele, que até então tinha 13 derrotas em 13 encontros frente a adversários do top 10 (e apenas dois sets ganhos), fê-lo pela primeira vez e tornou-se no primeiro homem português a alcançar tal feito em torneios do Grand Slam, pedaço de história acompanhado de uma inscrição inédita na terceira ronda masculina de Roland-Garros.

Se no domingo estavam sobretudo concentrados no canto próximo da equipa técnica e eram abafados pelos franceses que, sedentos de festa, até A Marselhesa entoavam, na quarta-feira os portugueses distribuíam-se pelos quatro cantos do segundo maior court do complexo, com bandeiras no ar e de punho cerrado a cada ponto fechado pelo Lidador.

Começava ali uma festa portuguesa, uma enorme festa portuguesa.

No camarote, ao treinador Hugo Anão (do CAR FPT) juntavam-se o pai tenístico João Maio, que o formou na Maia e veio a Paris de propósito, os amigos Henrique Rocha (com o treinador André Lopes, também do CAR FPT), Francisco Rocha, Francisco Cabral e alguns familiares, mancha suficiente para fazer daquela bancada no topo um local de muitos sorrisos misturados com uma certa incredibilidade.

Por respeito ao adversário, Borges foi comedido na hora de celebrar. E foi-o também na hora de refletir com a imprensa, atenuando como é seu apanágio a importância dos feitos que continua a assinar por este mundo fora. Pelo meio, elogiou a diplomacia inexcedível de Ruud, talvez não se apercebendo das semelhanças entre ambos.

De certa forma, está aqui um prémio justo para quem, há menos de um ano, sofreu na pele a crueldade de um desporto que não permite pausas, o sucesso em Bastad (onde derrotou Rafael Nadal para conquistar o primeiro título ATP) a sugar-lhe muita da energia de que precisava para sorrir nos Jogos Olímpicos de Paris.

Ainda a procissão vai no adro e esta já é uma festa portuguesa, com certeza.

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