Numa catedral em chamas, o triunfo, o desastre e a história como primeiras notas

A jornada inaugural mais quente da história de Wimbledon teve tudo o que se podia pedir — e até mais. Entre o (muito) suor e as lágrimas, o mais antigo e importante torneio do mundo contou com histórias para todos os gostos, inclusive português.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Wimbledon

Há um entusiasmo distinto quando se trata do primeiro dia no All England Club. A relva por estrear, o cheiro a rega e os detalhes pensados ao mais ínfimo pormenor fazem desta uma quinzena sem igual e ansiada por todos, afinal trata-se do torneio dos torneios e da catedral do ténis. Por isso, a expetativa para esta segunda-feira era grande. E se é verdade que a realidade nem sempre acompanha as expectativas, há dias em que as supera.

O preâmbulo já tinha anunciado uma certa anormalidade. Afinal, jantar um gelado em Londres faz parte de uma realidade paralela, a fronteira com um mundo fantástico em que tudo fica invertido. Devia ter adivinhado.

A onda de calor que se vive no continente europeu não passou ao lado de Inglaterra e Wimbledon começou com o primeiro dia mais quente da história, os termómetros já perto dos 30 graus ainda o sol começava a aparecer para lá das paredes de tijolo que indicam o caminho desde a estação de Southfields.

A magia dos 15 minutos que separam a estação de metro dos portões do All England Club foi derretida pelas temperaturas extremas, desde logo um dos assuntos de um dia que fez lembrar os tempos da Manic Monday — quando Wimbledon ainda parava no Middle Sunday, os 16 encontros de singulares relativos aos oitavos de final aconteciam todos na segunda-feira da segunda semana, uma programação com tanto de exaustivo quanto espetacular.

Não sendo possível comparar encontros da primeira ronda com a quarta, esta segunda-feira ganhou contornos semelhantes no que diz respeito ao dramatismo. Senão vejamos: houve favoritos a cair, heróis do público a sucumbir ao calor e a lesões, apenas pela terceira vez na história o campeão em título foi forçado a cinco sets no regresso ao torneio, bateu-se um recorde de velocidade e festejou-se como nunca nas cores da casa. Também nasceram estrelas.

Todos gostamos de finais felizes e neste primeiro dia não houve história como a de Oliver Tarvet. Depois de passar o qualifying, o britânico de 21 anos que ocupa o modesto 733.º lugar no ranking mundial prolongou a campanha de sonho com um triunfo por 6-4, 6-4 e 6-4 sobre o suíço Leandro Riedi. A vitória no quadro principal aumentou para cerca de 115.000 euros os ganhos, mas porque quer regressar à Califórnia para concluir os estudos na Universidade de San Diego terá de abdicar da maioria do prize-money para manter a elegibilidade — na verdade, Tarvet poderá usar o que bem entender para “despesas de torneio” enquanto continuar em prova, como mudar-se para um hotel melhor.

A ele juntaram-se Emma Raducanu, Katie Boulter (fez de Paula Badosa a primeira top 10 a abandonar o torneio feminino), Sonay Kartal, Arthur Fery, Cameron Norrie e Billy Harris, o próximo adversário de Nuno Borges.

Longe da ribalta, no pequenino Court 17 situado entre os magnânimos Centre Court e Court No. 1, o português quebrou a malapata e celebrou pela primeira vez no quadro principal de Wimbledon. Com os termómetros locais a assinalarem 32 graus e 35 de sensação térmica, foi difícil acompanhar in loco um torneio mais habituado à chuva do que ao calor — nos courts, até o espaço para refrigerar garrafas e toalhas é limitado e mantê-las à sombra foi uma batalha perdida pelo número um nacional.

Este foi mesmo o primeiro dia mais quente de Wimbledon, superando os 29 graus verificados na jornada inaugural de 2001, e que o diga Ons Jabeur. Finalista em 2022 e 2023, a tunisina está habituada ao calor, mas precisou de medir os sinais vitais e acabou por desistir a meio do embate.

Tornou-se na primeira de muitas baixas, a programação a desafiar os heróis enquanto as chamas aumentavam.

Qualquer jogador que se prepare para pisar o Centre Court terá, à distância de um olhar, a citação de Rudyard Kipling que Wimbledon tornou ainda mais famosa: “If you can meet with Triumph and Disaster and treat those two impostors just the same.”

Nada mais apropriado a esta segunda-feira, dia com margens tão ténues entre o triunfo e o desastre. Foi assim para Carlos Alcaraz, que resistiu ao último esgar de inspiração de Fabio Fognini e venceu em cinco sets num regresso ao Centre Court mais complicado do que o esperado; lá pelo meio, o espanhol ainda pegou numa garrafa de água para socorrer um espetador, o calor elevado a resultar em mais uma baixa e a obrigar a uma longa pausa ao final da tarde.

Holger Rune deixou escapar uma vantagem de dois sets a zero e perdeu para Nicolas Jarry, um adversário contra o qual garantiu que “ganharia nove em cada 10 vezes” não fosse a lesão no joelho que o afetou. Stefanos Tsitsipas ficou bem mais longe de uma boa réplica e desistiu quando já perdia por dois sets a zero para o modesto qualifier Valentin Royer no discreto Court 12, sinais dos tempos para o grego que continua à procura da sua melhor versão — e que chegou a Wimbledon com o ex-campeão Goran Ivanisevic na equipa técnica.

Pelo meio, também Daniil Medvedev caiu e já ao final da tarde foi a vez de Matteo Berrettini, o ex-finalista e especialista na relva, deixar a competição. Pela noite dentro, Alexander Zverev evitou uma desvantagem de dois sets a zero ao empatar o encontro com Arthur Rinderknech (um tie-break para cada lado) em cima do recolher obrigatório das 23 horas e evitou — ou pelo menos adiou — mais uma surpresa.

Bem menos satisfeito saiu Taylor Fritz, que entre a espada e a parede recuperou de 2-5 no tie-break do quarto set para forçar um quinto parcial contra Giovanni Mpetshi Perricard. Ainda eram 22h20, mas os responsáveis sugeriram uma interrupção que não agradou nada ao norte-americano e que o adversário prontamente aceitou, a bóia de salvação a falar mais alto do que o bom senso e até o fairplay. O francês ainda não criou qualquer ponto de break e pode mesmo tornar-se no primeiro desde que estes registos começaram, em 1991, a vencer um encontro em torneios do Grand Slam sem sequer ameaçar o serviço do oponente. O que já ninguém lhe tira é o serviço mais rápido da história do torneio: foi logo ao terceiro ponto, a impressionantes 246 km/h. Os apanha-bolas que tenham cuidado…

Wimbledon, o torneio das tradições, resiste, para já, a adotar a medida dos seus pares e descarta um arranque ao domingo, mantendo a distribuição da primeira ronda apenas por duas jornadas. Com tantas estrelas condensadas, é natural que qualquer um destes dias seja mais preenchido do que os demais em Melbourne, Paris ou Nova Iorque, por isso foi uma constante ouvir pelo complexo, pequeno para tantos espetadores, vários gritos de surpresa.

Esta foi mesmo uma jornada atípida e entre as poucas sombras e as muitas garrafas de água — também não faltaram as famosas Pimm’s — viveram-se horas especiais durante uma constante batalha com o calor. Ninguém quis ficar para trás e perder pitada da ação, afinal é de Wimbledon que se trata.

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