O reino da terra batida rendeu-se ao rei

Roland-Garros tinha uma oportunidade e não a desperdiçou.

A catedral da terra batida preparou-se para uma ocasião sem igual, moderou-se entre o clássico e o excêntrico e proporcionou ao rei a homenagem que faltava. Em Paris, classe foi a palavra de ordem para pintar a tela de despedida a Rafael Nadal.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris

Os 14 títulos em Roland-Garros correspondem a um dos recordes mais extraordinários da história do desporto, não apenas do ténis. São números sem igual, que roçam o surrealismo a cada passagem pela história: não há muito tempo, os seis conquistados por Bjorn Borg julgavam-se eternos, mas foram igualados em apenas sete edições; os sete de Chris Evert diziam-se inalcançáveis, mas acabaram duplicados; e os 14 de Pete Sampras no total dos torneios do Grand Slam eram descritos como uma marca irrepetível, mas exatamente duas décadas depois foram não só superados, como sobretudo replicados num só palco.

A história de Rafael Nadal em Roland-Garros tornou-se num raro caso em que a realidade ultrapassou a ficção, abrindo a porta à extravagância e exuberância.

A Federação Francesa de Ténis terá sentido essa tentação, mas a cerimónia de domingo, realizada exatamente 20 anos após o primeiro encontro do maiorquino no Court Philippe-Chatrier (a estreia foi no extinto Court 1, apelidado de Bullring pela semelhança a uma praça de touros), foi uma homenagem digna a um campeão fenomenal: ponderadamente grandiosa.

Não há canto do Stade Roland-Garros que não transpire classe e foi com o encanto parisiense que a tela de terra batida foi pintada com as pinceladas certas.

Quase todos os 15.000 sortudos com bilhetes para a primeira sessão diurna da quinzena receberam t-shirts de cor ocre com a inscrição “Merci Rafa”. Os outros tinham-nas brancas, uma moldura pensada para inscrever nas bancadas do palco maior as iniciais RN e os 14 títulos em RG.

Tudo foi preparado com meses de avanço, uma lição de Paris (a cidade que já o tinha homenageado à escala global durante os Jogos Olímpicos) ao fiasco de Málaga, onde a curtíssima passagem de Rafael Nadal pela fase final da Taça Davis, que escolheu como derradeiro torneio da carreira, foi manchada por uma cerimónia parca em sentimento, preparação e empenho, levada a cabo já para lá da meia-noite — tarde até para os espanhóis — e sem grandes figuras presentes.

No Court Philippe-Chatrier, estavam na primeira fila o tio Toni Nadal, maior responsável pela dedicação do sobrinho ao ténis em vez do futebol, os pais Aina María Parera e Sebastià Nadal, a mulher Maria Francisca Perello e o filho, Rafael júnior. Não podia ser de outra forma.

Tal como não podia ser de outra forma começar uma cerimónia dedicada a Rafael Nadal em Roland-Garros com a introdução de Marc Maury, o mestre de cerimónias que ao longo dos anos passou a acrescentar cada um dos títulos ganhos em Paris à longa e emotiva apresentação antes de cada encontro.

Daí em diante, foi belíssimo.

Durante vários minutos ali estava Rafael Nadal, sozinho no meio do court onde tantas vitórias celebrou, rodeado de bancadas vestidas em sua homenagem. Desta vez, não era o suor que lhe escorria pela cara, imagem de marca tão própria, mas sim as lágrimas, cada vez mais visíveis à medida que os ecrãs gigantes revelavam um longo e emotivo vídeo que resistirá aos tempos.

Esteve ali sozinho durante vários minutos, uma mão na anca, a outra apoiada no balcão, possivelmente a sentir pela primeira vez a impotência que causou a tantos rivais naquela mesma terra batida.

Não foram necessários troféus ou outros adereços. Nada teria tanto peso quanto os 20 minutos que Rafael Nadal passou, sozinho, no court mais importante da carreira.

Nada… e quase ninguém.

A história do maiorquino alarga-se aos restantes pilares da superfície com 12 títulos em Barcelona, 11 em Monte Carlo, 10 em Roma e cinco em Madrid (o primeiro quando o torneio ainda era realizado em hard courts), o domínio no pó de tijolo a ser a sua maior marca, mas não a única, num reinado que construiu em simultâneo com Roger Federer, Novak Djokovic e Andy Murray.

Também aí Paris brilhou, ao exibir um vídeo com mensagens do suíço, do sérvio e do escocês, não deixando de fora o quarto elemento de um grupo em que, apesar de não ter alcançado o mesmo sucesso, foi indiscutivelmente uma presença assídua.

Nadal nada sabia, porque depois de ter aceite ser homenageado nada quis saber sobre os preparativos. Foi, por isso, com a mesma surpresa de todos que os viu entrar sorridentes pela porta para onde tantas vezes os enviou taciturnos.

Antes, já tinha cedido às lágrimas ao ser surpreendido com a presença de membros do staff de Roland-Garros. Todos reunidos para honrarem o jogador, mas também o carácter de um competidor que, com os valores incutidos pelo tio, cresceu a saber respeitar os elementos da comunidade tenística. Abraçou-os, um a um, retribuindo num gesto a dedicação de décadas.

Nadal ficou conhecido pelo cerrar do punho para celebrar, mas nunca escondeu emoções. Impiedoso dentro do court, demonstrou o lado sensível em inúmeras ocasiões. Chorou com Federer durante a despedida do suíço na Laver Cup, correu na direção de uma apanha-bolas e confortou-a com um beijo na bocheca depois de a atingir inadvertidamente, teve sempre uma palavra de conforto para os maiores rivais e nunca se ouviu, de sua boca, proclamações sobre o lugar na história que os números lhe reservam.

Também por isso — e sobretudo por isso — é fácil associá-lo a Roland-Garros, uma relação torneio-jogador inigualável e, aqui, eternizada.

O derradeiro gesto chegou quando já estava de troféu nas mãos, a revelação de uma placa com uma pegada, o nome e Taça dos Mosqueteiros com a referência aos 14 títulos. Gilles Moretton, presidente da FFT, e Amélie Mauresmo, diretora do torneio, revelaram a inscrição, junto ao poste da rede oposto à cadeira do árbitro, e deixaram-no incrédulo ao explicarem que ali ficará para sempre, não apenas durante esta edição.

Nunca no desporto se viu algo assim, afinal, nunca no desporto houve algo assim.

Roland-Garros vai continuar a passar o court entre sets e a mudar a superfície entre edições, mas a marca de Rafael Nadal ficará ali para sempre. Na sua terra batida.

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