A longa-metragem que Woody Allen estreou há 14 anos deu nome a um dos encontros mais dramáticos do ténis português. Nesta história, o protagonista foi Nuno Borges e houve direito a final feliz.
Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris
O sol já se tinha posto atrás do Court Suzanne-Lenglen quando chegou a hora. Foi um final de tarde emocionante, marcado pela despedida a Rafael Nadal recheada de classe que a Federação Francesa de Ténis preparou e tão bem entregou, por isso vivia-se um clima melancólico, nostálgico até.
À entrada para este domingo inaugural, tudo indicava que os dois portugueses escalados entrariam em ação na mesma janela horária. Pelo meio, desenrolaram-se batalhas que, aqui ou ali, muito perto estiveram de ser rápidas e permitir uma conciliação mais agradável. Mas não tivemos sorte, não tive sorte, por isso lá me dividi entre os courts 6 e 9 que, do mal o menos, são próximos um do outro.
A circulação não foi nada fácil durante as primeiras trocas de lados porque o recinto ficou sobrecarregado com as 15.000 pessoas que abandonaram o Court Philippe-Chatrier depois da sessão diurna. Era uma mancha ocre, composta pelas 15.000 t-shirts cor de terra batida distribuídas para a homenagem de um reino ao seu maior rei. Entre muitas lágrimas e alguns abraços, a multidão rodeava os dois campos de batalha que me interessavam.
Com o cair da noite, o cenário chegou a parecer negro. Jaime Faria não resistiu à maior rodagem de Jenson Brooksby e por essa altura já Nuno Borges perdia por dois sets a zero com o qualifier semi-desconhecido Kyrian Jacquet. Mas como os melhores guiões, também este contou com surpresas, reviravoltas e, claro, um final feliz — bom, menos para os franceses.
No filme que escreveu e realizou, Woody Allen cruzou um escritor estadunidense com vários intelectuais e artistas numa viagem ao passado durante os passeios madrugadores pelas ruas de Paris.
No compacto Court 6, a noite de domingo transformou-se numa grande tela onde foi projetada a 50.ª vitória de um homem português em quadros principais de torneios do Grand Slam — e a primeira na sequência de uma desvantagem de dois sets a zero. Sem passeios ou viagens ao passado, Borges teve de lidar com um adversário endiabrado, um público insaciado e até um corpo desgastado.
Dois anos após o triunfo no tie-break do quinto set sobre John Isner, também este teve contornos épicos.
A Academia premiou “Meia-noite em Paris” com o Óscar de Melhor Argumento Original e essa é, precisamente, a única distinção em que a vitória de Nuno Borges pode inserir-se, não sendo sequer necessário um período de reflexão para a excluir das melhores prestações do português.
Cheguei ao Court 6 quando o Lidador (a alcunha foi devidamente atribuída ao maiato pelo jornalista Manuel Perez) vencia o segundo set por 5-3. Deixou escapar o break de desvantagem, foi demasiado errático no tie-break e ficou entre a espada e a parede perante centenas de adeptos franceses que, em êxtase, entoavam A Marselhesa e outros cânticos que, encafuados entre os dois maiores palcos do Stade Roland-Garros, se projetavam para lá das duas bancadas lateriais — que o digam Faria e Brooksby, tantas vezes obrigados a duelar debaixo de gritos alheios.
Na Sétima Arte, não há estrela que não repita um take. Procura-se a perfeição e não há pormenor que passe em branco.
No desporto, bem, no desporto todos sabemos que o que lá vai, lá vai e é isso que o torna tão belo. O inesperado, as lágrimas, o punho cerrado, até as cãibras.
Com uma reduzidíssima taxa de conversão de break points (terminou com 7/22, mas chegou a ter apenas 3/18), Borges acrescentou páginas ao argumento.
O plot twist começou ao 4-4 da terceira partida. Sem lugares disponíveis, acompanhei grande parte da reviravolta de pé, na zona reservada aos fotógrafos e espetadores com mobilidade reduzida, a meros centímetros dos dois protagonistas e, por isso, bem atento a todos os sinais. Jacquet, pouco habituado a estas andanças, já não escondia os sinais de desgaste físico. Borges, mais do que habituado a longas distâncias, cheirou o sangue, olhou na direção da equipa técnica — esta semana liderada por Hugo Anão — e apontou para a terra batida, sinalizando que aquele era o momento. Dito e feito, assinou a quebra de serviço e logo a seguir selou o parcial.
O quarto set ainda começou com uma troca de breaks, suficiente para preocupar os três jornalistas portugueses que deixaram o court por breves minutos para falar com Jaime Faria, mas a reação imediata estancou a curta reação de Jacquet, por essa altura já desesperado por um milagre enquanto o corpo lhe faltava.
Qualquer embate que se prolonga pela noite dentro ganha contornos épicos e este foi dramático sobretudo pela carga de sofrimento e superação, qualidades — e capacidades— tão necessárias para se fazerem heróis e se contarem histórias.
Às 00h16, a sessão terminou com os parciais de 3-6, 6-7(3), 6-4, 6-4 e 6-3 e, tal como em Cannes, também em Paris houve direito a ovação.
Borges, exausto, encontrou forças para uma efusiva celebração. Atrás dele, levantaram-se os compatriotas que o ajudaram a batalhar contra os franceses, por essa altura já rendidos à reviravolta e também eles a aplaudi-lo. Efusivos, os adeptos da casa são capazes de criar o ambiente mais hostil dos quatro torneios do Grand Slam, mas o português respeitou-os e viu retribuído esse comportamento.
“Meia-noite em Paris” nunca mais será apenas um título de Woody Allen, a partir de agora é também o preâmbulo de uma vitória sem igual. E assim, citando Humphrey Bogart em Casablanca… Teremos sempre Paris.