Opinião: Ser número 1 do mundo traz responsabilidades

De raquete na mão há poucos que lhe façam frente, mas fora do court o sérvio deixa a desejar com um discurso duvidoso — e até perigoso.

Depois de lançar um par de iniciativas que animaram o universo das raquetes e recolheram muitos elogios pela forma como mostrou abertura para abordar os períodos mais negros da carreira, Novak Djokovic voltou às bocas do mundo por razões polémicas.

Primeiro, revelou ser contra a vacinação — o que levou um dos epidemiologistas mais conceituados do seu país, Predrag Kon, a alertá-lo publicamente para o facto de estar “a contribuir para a difusão de uma opinião errada” sobre um método de prevenção fundamental, “especialmente num caso como este”.

E mais recentemente promoveu um conjunto de conversas em direto, no Instagram, em que falou sobre vários temas, no mínimo, discutíveis. Desde o momento em que afirmou que conhece pessoas que “graças aos poderes da oração e da gratidão conseguiram transformar os alimentos mais tóxicos, ou mesmo os mais poluídos, na água mais pura” à referência de um método de diagnóstico da alergia ao glúten que consiste em pressionar uma fatia de pão contra o antebraço e observar a redução da força, não esquecendo o regresso a questões ligadas à telecinesia.

Estes e outros assuntos e discursos não são novos no dia-a-dia do jogador de Belgrado, que em 2017 se separou do treinador Andre Agassi por se opôr veemente às intervenções cirúrgicas por acreditar que a lesão no ombro seria superada com tratamentos alternativos — no ano seguinte submeteu-se à operação e seis meses mais tarde venceu Wimbledon, o primeiro de cinco títulos ganhos nos oito Grand Slams que desde aí se disputaram, mas revelou ter chorado três dias consecutivos porque “de cada vez que pensava no que fiz, sentia que me tinha falhado a mim próprio.”

Mas recuperaram destaque nas várias conversas de cerca de uma hora que Djokovic teve com Chervin Jeferiah, “um irmão de outra mãe” que fundou e aproveitou o direto para promover a sua empresa especializada na venda de suplementos alimentares que têm como objetivo melhorar o bem-estar e a saúde dos consumidores. Num dos casos, graças a “nutrientes avançados para o cérebro” concentrados em embalagens à venda a partir de 50 dólares — uma passagem rápida pelas área das perguntas mais frequentes desvenda o aviso legal: “os resultados podem variar de pessoa para pessoa e não estão garantidos.”

A polémica tem sido tal que, nas conversas mais recentes, Djokovic bloqueou a possibilidade dos espetadores escreverem comentários em direto e começou as sessões com uma espécie de aviso — “Não estamos a pregar. Todos temos o direito e a liberdade de escolher aquilo em que acreditamos. Respeitem a minha vontade de fazer isto, faço-o com as melhores intenções.”

O sucesso de Novak Djokovic não está em causa — muito pelo contrário. A forma como atingiu o estrelato num desporto tão duro quanto o ténis, como superou todas as adversidades e se transformou de “um miúdo magrinho” a um dos melhores atletas do mundo — isto ao mesmo tempo que adotou uma dieta glúten free. É notável.

Mas foi o sucesso que alcançou que lhe atribuiu um poder de opinião e uma credibilidade ao alcance de poucos — e é por isso que os discursos que escolhe importam.

Ser o melhor jogador de ténis do mundo e um dos desportistas mais consagrados da atualidade traz responsabilidades. Djokovic é um ídolo para milhões de seguidores e como qualquer ídolo desempenha nos seus seguidores um papel de influenciador — ele sim, é um verdadeiro influencer.

Qualquer que seja a mensagem que o sérvio passe vai ser ouvida e considerada não por milhares, mas por milhões de pessoas, a grande maioria com recursos e acesso à informação significativamente inferiores aos seus. Neste caso, as afirmações no mínimo duvidosas dos diretos com Chervin Jeferiah passaram de uma audiência possível de cerca de 50.000 para 7 milhões, número de seguidores do tenista sérvio no Instagram.

Quem também contribuiu para um mês desastroso em termos de comunicação foi Jelena Djokovic, a mulher do jogador, que no início de abril foi identificada pelo Instagram por partilhar um vídeo portador de informação falsa ao relacionar o surto de coronavírus com a tecnologia 5G — uma teoria já largamente descredibilizada por especialistas. É importante referir que Jelena, tal como Novak, tem a sua (considerável) audiência e, sobretudo, influência, ou não fosse ela a responsável pela Novak Djokovic Foundation.

Se dentro do court não há argumentos que lhe retirem o estatuto de um dos melhores de sempre, um feito que pouquíssimos alcançaram sobretudo se considerarmos que a carreira ainda pode estar longe de encerrada, fora dele Novak Djokovic ainda deixa muito a desejar. E esse será o fator que o manterá atrás dos eternos rivais, Roger Federer e Rafael Nadal, quando as três carreiras estiverem concluídas, mesmo que até lá o domínio dentro do court o leve a suplantar os recordes que ainda tem à sua frente.

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