Bjorn Borg veio a Portugal há 40 anos e o ténis nunca mais foi o mesmo

João Lagos está rodeado de familiares, amigos, ex-colaboradores e jornalistas. As mesas colocadas de forma a que todos falem entre si de uma maneira muito informal, como fez questão de assinalar para quebrar o gelo — rapidamente derretido. O restaurante do Clube de Ténis do Estoril é o local escolhido para a celebração dos 40 anos primeira presença de Bjorn Borg em Portugal, no Dramático de Cascais, em 1982, um evento que quebrou estigmas, aproximou o ténis da população portuguesa, colocou-o em horário nobre pela primeira vez e ajudou-o a “virar moda”. E a partilha das várias peripécias de uma aventura que de impossível passou a real rapidamente tomam conta da ocasião.

“Recebi uma chamada de um tipo dinamarquês, o Ole Fredericson, que se intitulou uma espécie de agente de um miúdo que vinha cá jogar os nossos circuitos, o Peter Bastiansen. O Ole Fredericson soube de mim através desse miúdo e o problema dele era que tinha contratado o Bjorn Borg e o Vitas Gerulaitis para jogarem três noites em Copenhaga, mas saltou-lhe um sponsor e só tinha dinheiro para os ter uma noite. Estava aflito porque tinha um contrato e se não arranjasse maneira de passar a bola a alguém tinha ali um problema financeiro grande, então pôs-me a questão a mim”, recorda João Lagos.

Os 77 anos que o bilhete de identidade indica não se refletem na memória, que sem esforço recorda o desenrolar de uma corrida contra o tempo, mas é à idade que recorre para contextualizar os “vários pequenos-grandes milagres” que precisou de fazer acontecer. “Eu era um treinador de ténis de manhã à noite, sem interrupções”, diz no início da conversa, mais tarde acrescentando que “o meu networking de relacionamentos ainda era muito vago” e lembrando que “não era o João Lagos que vim a ser, naquela altura pouca gente me conhecia.” Tinha acabado de organizar o primeiro circuito satélite em Portugal (1981), o Estoril Open enquanto torneio do ATP Tour (1990) ainda estava a oito anos de distância e a Tennis Masters Cup (2000) ao equivalente à chegada à maioridade.

“Falámos de manhã e nesse mesmo dia o homem aterrou em Lisboa e reunimos no bar do hotel Ritz. Ele começa a dar-me os tópicos, as datas, fala-me do valor e eu entusiasmadíssimo, não é? só me passava pela cabeça que se conseguisse trazer o Bjorn Borg a Portugal ia partir a mobília toda (risos). Eu prometi-lhe por tudo e mais alguma coisa que ia pensar no assunto e tentar arranjar uma solução, porque estava interessantíssimo”, recorda já antecipando as duas reuniões que se seguiram e que tornaram real a possibilidade de Borg fazer a viagem até Portugal.

Bem cedo, com o mesmo fato de treino com que horas depois pisaria o court e aventurar-se no desconhecido, João Lagos deslocou-se ao escritório da Casa Macieira — que através do whisky Chivas acabou por dar o naming sponsor ao evento — para pedir um patrocínio. “O José Machado Leite lá me atendeu. Naquela altura eu conhecia vagamente estas pessoas e pouca gente me conhecia, mas eu tinha de ter o atrevimento para lhes bater à porta e quando começo a falar com o José Machado Leite sobre esta coisa do Bjorn Borg ele fica com o radar alerta. Ia fazendo perguntas e quando me pergunta pela televisão eu começo a sentir… ‘Este tipo não me mandou embora para casa, não se assustou com o dinheiro e pergunta-me como é que é com a televisão, é porque está a gostar da ideia.”

A essa abordagem seguiu-se uma repentina viagem até às instalações da RTP na Avenida 5 de Outubro e ninguém melhor do que o próprio para a contar em discurso direto:

“Despedi-me, informei-me lá com a secretária dele como é que ia para a televisão e depois da senhora me dizer lá me meti no meu carrinho e fui à procura da televisão (risos). Ao chegar lá entro e vejo um grande balcão com umas meninas sentadas, mas elas estavam enterradas e só quando se chegava ao balcão é que se viam. Eram três ou quatro e eu olhei e disse que queria falar com o presidente. Quando digo isto a menina que me atendeu olhou para o lado, para as colegas, e começaram-se a rir, a fazer troça de mim. Este chouriço aparece aqui nesta figura e quer falar com o presidente… Mas lá me pediram para esperar um bocadinho e não passaram 10 minutos até que a menina se levantou, chamou-me e já com uma cara mais séria disse-me que o presidente, Daniel Proença de Carvalho, ia receber-me. Deram-me um cartãozinho para entrar nos torniquetes e quando chego lá ao oitavo andar, à saída do elevador era o próprio Daniel Proença de Carvalho, que eu não conhecia. Tinha ouvido falar vagamente do nome, mas não conhecia e estava à minha espera à porta do elevador. Eu de fato treino, meio molhado, e ele saiu do gabinete, veio ao elevador receber-me e acompanhou-me até ao gabinete dele. Eu estava a achar aquilo tudo… Estou em casa, sentia eu. Ele tinha uma vaga ideia de mim, mas conhecer-me do ténis naquela altura… Não me perguntem, porque eu não lhe perguntei como é que me conhecia (risos). Eu achava aquilo uma sorte enorme, estava ali uma estrelinha qualquer.”

“Ele lá me acompanha ao gabinete e eu conto-lhe a história que vos contei a vocês. Conto-lhe a história toda com algum entusiasmo à mistura, desde o Ole Fredericson a ligar-me de Copenhaga a ir bater à porta do José Machado Leite. E olhe, estou aqui a conversar consigo. Ele perguntou-me pelo valor, sempre sorridente e com um ar otimista, e pega num dos seus telefones internos para chamar o Doutor Pinho Cardão, administrador financeiro. E ele vira-se para mim e pergunta: E se eu lhe der o valor em causa, de que não me lembro, e chamou-lhe um nome, e se eu lhe der o valor em causa em ad time? E eu ’em ad time? Porra, tive de decifrar aquilo mais ou menos sozinho, não quis fazer muitas perguntas porque achei que ia dar muita barraca com tanta ignorância, e lá percebi que o que ele me estava a dar era o equivalente ao valor de que eu precisava em tempo de antena, em publicidade.”

“Ainda não eram 11h da manhã e já eu estava de volta ao escritório do José Machado Leite, que ficou impressionado com a rapidez com que eu tinha montado este filme e me mandou falar com o diretor comercial. Nunca mais me esqueço que era o Sr. Paixão, que era o tipo da massa e que pegaria no pacote e arranjaria maneira de transformar aquilo em dinheiro. Lá fui eu e assim aconteceu, de repente o cash para pagar tudo apareceu e nesse mesmo dia voltei a falar com o Ole Fredericson, que não conseguia acreditar. E a partir daí começa a outra loucura, porque o custo da operação não é só o cachet do Borg, mas como é que eu me ia lembrar disso? Eu sabia lá (risos).”

Com o cachet, o main sponsor e a transmissão televisiva assegurados, faltava a João Lagos encontrar um local capaz de acolher um evento de tamanha envergadura. “Em 24 horas resolvi o problema do dinheiro, mas era preciso pôr o homem a jogar e não me passava pela cabeça a dificuldade que ia ser encontrar um sítio para fazer isto acontecer. Bati a muitas portas até que tinha mesmo de ser em Cascais e depois tinha mesmo de ser no Dramático de Cascais, só que chegas lá e é um pavilhão coberto com um ringue de hóquei em que se jogava uma data de coisas, o calendário de atividades era uma coisa totalmente impossível e nós precisávamos de duas noites para os encontros e mais não sei quantas para montar o tapete. Ainda por cima o Bjorn Borg tinha a exigência de jogar num piso lento, porque ia começar a época de terra batida, e onde é que eu ia arranjar uma alcatifa? A mais próxima que descobri era algures em França, o meu networking de relacionamentos era muito vago, até que só havia uma hipótese, que era construirmos nós o court.”

Os desafios continuaram e com várias formas e feitios, desde a construção do court — uma manta geotécnica utilizada na construção civil, que serviu para preservar o precioso parquet do hoquéi, coberta de uma camada de betume que teve de ser secada com a ajuda de aquecedores emprestados pelo dono de uma loja de eletrodomésticos do centro de Cascais — à iluminação, emendada à última hora para cumprir as necessidades da televisão.

Arquivo do Jornal do Ténis (1982)

Até que a audácia foi recompensada e, superadas as várias peripécias, a Chivas Regal Cup aconteceu e nos dias 24 e 25 de março o lendário Bjorn Borg competiu no Teatro Dramático de Cascais.

A primeira jornada foi dedicada às meias-finais, em que o sueco derrotou Paul McNamee — futuro diretor do Australian Open e um dos grandes responsáveis pela subida de estatuto do torneio do Grand Slam australiano — e Vitas Gerulaitis superou o alemão Rolf Gehring.

No dia seguinte, a 25 de março de 1982, os dois defrontaram-se na final que sorriu ao norte-americano, muito célebre pelos feitos dentro do court — conquistou o Australian Open, foi finalista em Roland-Garros e no US Open, jogou duas meias-finais em Wimbledon, duas finais no Masters, venceu o antigo WCT Finals e uma Taça Davis e chegou a número 3 mundial —, mas também pela célebre frase “ninguém vence Vitas Gerulaitis 17 vezes consecutivas” após finalmente derrotar Jimmy Connors no Masters de janeiro de 1980 (relativo à época anterior), à 17.ª tentativa.

Paralelamente à loucura de Cascais, um pedido feito pelo próprio Bjorn Borg levou João Lagos a iniciar contactos para uma terceira exibição, que dois dias depois fez aterrar o campeoníssimo sueco em Famalicão.

“Na altura havia pouquíssimos pavilhões em Portugal e eu pedi ajuda ao José Costa Duarte, que era o diretor de um hotel na Póvoa de Varzim explorado pela cadeia D. Pedro, cujo dono era o Stefano Saviotti. Ele lá fez uns contactos e ligou-me a dizer que em Famalicão tinha acabado de ser inaugurado um pavilhão novinho em folha e aquilo lá acabou por acontecer. Relacionado com isto há um mar de histórias, nunca mais acabam, mas agora estou a lembrar-me de uma que vou ter de contar”.

Da esquerda para a direita, o piloto, João Lagos, Bjorn Borg, Maude Queiroz Pereira Lagos e o treinador Lennart Bergelin

O almoço já vai longo, mas João Lagos ainda acrescenta com entusiasmo e perante a atenção dos que o rodeiam uma última recordação acerca de uma das semanas mais imprevisíveis da sua vida.

“Em Famalicão só houve o encontro de exibição entre o Borg e o Gerulaitis. O Lennart Bergelin, famosíssimo coach do Bjorn Borg, tinha-me contado que tinha uma pequena hérnia que precisavam de operar, mas não tinha tempo porque eles não paravam de viajar e então estava sempre a adiar. E estávamos nós em pleno match quando ele tem uma crise enorme e vêm ter comigo. Eu que não conheço Famalicão fico ali aflito, vou falar com as poucas pessoas que conheço e às tantas alguém diz que viu nas bancadas um cirurgião conhecido lá do Norte, que tinha bilhete e estava a assistir. Ele veio cá abaixo, lá se resolveu aquilo num consultório não percebi bem de quem e ele operou-lhe a hérnia, não me perguntem como, e ainda vimos o resto do jogo.”

Pelo meio, a primeira passagem de Bjorn Borg por Portugal também “deixou marca” no histórico Club Internacional de Foot-Ball, onde treinou para preparar a época de terra batida que se aproximava. E as exibições no Dramático de Cascais foram o primeiro serviço para uma série de eventos que nos anos seguintes trouxeram ao país outros ex-líderes do ranking ATP, como John McEnroe, Ivan Lendl e Jimmy Connors.

Arquivo do Jornal do Ténis (1982)
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