Inside out com Pipa Santos | Um curso de programação e o que custa ser atleta em Portugal

Passaram-se mais dois meses, o que faz quatro meses de recuperação da cirurgia ao meu joelho esquerdo. A recuperação está a correr bem. No final do terceiro mês começámos com caminhadas e até com um pequeno trote na passadeira. Os exercícios no ginásio têm sido bem duros e já com cargas mais altas (já passei dos quatro quilos, palmas para mim), mas o pensamento no final do treino é sempre de objetivo cumprido e que escalei mais um pouquinho neste longo processo. No final do quarto mês já consegui saltar no step e fazer alguns deslocamentos laterias em câmara lenta.

A minha ideia era ter conseguido escrever um artigo a cada mês para ser algo regular, mas, entretanto, inscrevi-me numa escola de programação chamada 42 Lisboa e tive nas últimas quatro semanas uma experiência muito intensa por lá. Todos os dias (sim, incluindo sábados e domingos). Para além disso, estes últimos dois meses foram bastante pesados mentalmente. Acho que deitei uma lágrima todos os dias. Tentar recuperar a forma é sempre algo desafiante e há dias em que é mesmo muito difícil com todo o cansaço acumulado. No entanto, tento sempre pensar e tirar coisas positivas do dia-a-dia e todo o dia que passa é menos um na tortura do Francisco (fisioterapeuta). Também pensei bastante sobre o tema deste texto e ainda não sei bem se será a melhor ideia, mas vou atirar-me de cabeça e ver no que isto dá.

Nas últimas semanas tenho pensado muito na minha carreira até hoje. Penso que poucos sabem da minha história, mas assim muito resumidamente a minha aposta séria a nível profissional internacional apenas começou depois do isolamento em 2020. Até então tinha desistido do ténis durante algum tempo quando entrei para a faculdade e acabei um mestrado em Engenharia. Depois disso decidi dar uma hipótese ao desporto e sempre tive em mente tentar seguir o sonho, mas os anos de covid foram complicados para todos. Fui tentando. O meu corpo também nunca me permitiu grandes aventuras porque nunca tive o trabalho físico adequado e apareceram muitas lesões chatas. Além disso, a nível financeiro nunca foi fácil conseguir conjugar o ténis com a vida.

Mesmo assim, e para quem não sabe, tive muita sorte enquanto jogadora juvenil. Tive como meu treinador durante 10 anos uma das pessoas mais talentosas e profissionais que conheço no ténis, o Nuno Páscoa. Tudo o que sei devo-lhe a ele. Não tivemos o percurso mais fácil, mas sempre nos mantivemos juntos e ele sempre acreditou no meu potencial. Com sorte ou não, fui patrocinada pela Babolat de Espanha desde os 13 anos até aos meus 18, até que as lesões aparecem e os rankings desaparecem. Tinha patrocínio tanto de material para jogar como de roupa e calçado. Era sempre um dia feliz quando recebia os caixotes das encomendas com todo o material. Sempre me senti muito grata por ter esse apoio, mas nunca me tinha apercebido da diferença que isso faz na vida de um atleta. Especialmente de um atleta de ténis.

Os anos passaram e eu nunca me tinha apercebido realmente do que custava ser atleta. Para mim era só um jogo divertido que eu queria ganhar mais do que tudo. E hoje ainda me custa a crer o que custa ser atleta em Portugal.

Sempre ouvi muitos jogadores dizerem o quanto o ténis é um desporto difícil e o quanto era difícil apostar numa carreira. Sempre achei que fosse pela complexidade do desporto em si e não pela dificuldade de arranjar apoios e patrocínios. Nunca pensei que quando se viajasse para torneios internacionais a nível profissional um atleta tivesse de bancar tudo. Com 16 anos temos pouca noção do mundo à nossa volta.

Hoje, com 27 anos, a maneira de ver as coisas é bastante diferente. É certo que estou a recuperar de uma lesão, mas com todos os custos que isso acarreta e ainda sem receber qualquer tipo de salário, porque não posso jogar torneios, fica complicado. Mas considero ainda mais complicado jogar torneios e é essa a razão pela qual tenho pensado muito na minha carreira — e uma das razões pelas quais eu me inscrevi na 42 Lisboa.

Os meus pensamentos passam muito por: “Será que quero começar tudo do zero novamente?”, “Onde é que eu vou arranjar dinheiro para viajar e jogar torneios?”, “Onde é que vou arranjar dinheiro para pagar os meus treinos e, depois da fase de recuperação terminar, já sem acesso ao reembolso do seguro de saúde, onde é que vou arranjar dinheiro para tratar do meu corpo?”. Todas as questões pesam e não tem sido por falta de me apresentar que as oportunidades têm surgido. Muito pelo contrário.

Na verdade, como sempre tive o apoio da Babolat e quando era mais nova não houve a necessidade de viajar tanto, não tinha muita dificuldade para jogar torneios. Restringia-me mais a jogar em Portugal. Cheguei a ser n.º 40 do ranking Tennis Europe sub 16 e só tive noção disso quando fiz um currículo numa disciplina da faculdade. Pensei que podia valer de algo e guardei essa informação na minha mente.

Hoje em dia (e desde sempre), dizer que fomos 40 de um ranking internacional, que somos atletas da seleção ou que estamos a tentar apostar numa carreira profissional e estamos dentro das melhores 900 jogadoras do mundo não conta para nada. Teoricamente só estes três feitos já são considerados muito bons e difícil de atingir para muita gente. Para mim, como eu quero sempre mais, descarto sempre as coisas boas que fiz e depois penso: “Se eu descarto estes feitos, o que será que uma empresa/marca pensa disto?”.

Em Portugal, viver do desporto é algo inatingível a não ser que sejamos jogadores de futebol. Sempre que falo neste assunto recordo-me do Jorge Fonseca (judo). Este nome para mim significa trabalho, resiliência, humildade e, acima de tudo, força. Força física, sim, mas falo do que chamam de “força mental”. Um dos meus maiores ídolos do desporto, campeão de tudo e mais alguma coisa e mesmo assim com dificuldade em ter patrocínios. Sempre foi campeão e teve marcas a dizerem-lhe que não. Sempre penso: “Se o Jorge Fonseca teve dificuldades com patrocínios e foi campeão do mundo múltiplas vezes, quem sou eu para pedir o que quer que seja?”.

Outros exemplos são a Cátia Azevedo (atletismo) e o Rui Bragança (taekwondo) em que ambos são atletas olímpicos, mas mesmo assim têm de trabalhar (médicos) para conseguirem sustentar as suas vidas, famílias e até carreiras. Podem dizer: “O ténis é um desporto muito elitista, muito caro, só para alguns”. Não concordo. A mentalidade e a cultura desportiva em Portugal é que são escassas.

Queremos pedir medalhas olímpicas a atletas profissionais que se matam a ter uma carreira dual. Porque é que em Portugal ser atleta é uma “brincadeira”, um hobby, um part-time e não é um trabalho? Porque é que em Portugal os atletas continuam a ter de se desdobrar em carreiras duais para sustentar carreiras? Porque é que em Portugal os atletas não conseguem ter mais patrocínios, mais ajudas financeiras de marcas? Se 10 marcas derem 100€ a um atleta, esse atleta já fica com 1000€ para poder trabalhar no seu desporto e a marca ganha com a imagem do atleta e a divulgação em como apoia um atleta internacional.

Utilizando o meu desporto como exemplo, se estivermos no começo de uma carreira internacional teremos de começar pela base. Essa base destina-se aos torneios organizados pela ITF, sendo o de prize-money mais baixo um 15.000$ e de seguida um 25.000$. Utilizando também o exemplo de um local onde há torneios todas as semanas e de que se fala como uma grande oportunidade para fazer os primeiros pontos porque existe toda a adaptação ao local, aos campos, à comida, etc, acabamos por habituar-nos e passado uns tempos as desculpas relativas ao fracasso reduzem-se.

Neste caso posso utilizar o exemplo da Tunísia (Monastir), que tem feito um grande trabalho no que toca a torneios durante todo o ano. Os preços são dados a conhecer aos jogadores semanas antes dos torneios começarem de força a poder reservar-se hotéis e transportes de forma antecipada.

Imaginando que vou disputar um torneio à Tunísia daqui a 1 mês, os voos rondam os 500€ ida e volta. Neste sítio em particular o clube encontra-se dentro de um resort onde se pode usufruir de estadia full-board, ou seja, hotel com todas as refeições incluídas e em que o valor é 98€ por um quarto individual, ou 72€ por um quarto duplo (valor por pessoa). Ainda tem de se considerar o transporte do aeroporto para o clube, que se forem de 1 a 3 pessoas fica 65€. No total, apenas para chegar ao torneio e considerando que viajamos sem treinador para poupar e mesmo assim partilhamos quarto com outra pessoa, o valor semanal fica nos 504€. Podemos tentar arranjar sítios fora do resort para ficar, mas nesses casos já aconteceu cobrarem aos jogadores para treinarem nos campos enquanto não estão em dias de jogo. Se marcarmos logo o bilhete de regresso pode acontecer perdemos muito dinheiro no início da semana e ficarmos muitas vezes à espera do dia do voo e termos de ficar a treinar nestes sítios.

Incluíndo o bilhete de avião, uma semana de torneio sem treinador fica, em média, nos 1.000€.

Pensando agora que o prize-money deste torneio é de 15.000$, o vencedor deste torneio fica com ~2100$. Parece ser bastante bom, mas não nos podemos esquecer de que existem taxas e estando a jogar num país estrangeiro a taxa é normalmente maior do que no país de residência. Na Tunísia ficam com 20% do prize-money e a inscrição de 36€ é sempre deduzida, ou seja, o vencedor sai com ~1600€.

Para ganhar um torneio é preciso passar por cinco adversários, o que nem sempre é fácil. Se um jogador perder na primeira ronda de um torneio de 15.000$ apenas sai de lá com 72€. Claramente sai com prejuízo e, para ter sucesso neste desporto, muitas vezes as coisas não correm como queremos e acontece perder várias vezes nas primeiras rondas até se começar a ganhar, o que faz com que vários jogadores com talento fiquem pelo caminho. 

No fundo, se 10 empresas dessem 100€ a um atleta todos os meses fariam uma grande diferença na vida do atleta e as empresas acabariam por ganhar conhecimento e divulgação com todo o processo. A pressão de jogar a pensar no dinheiro que se vai perder é enorme e pode mesmo prejudicar a carreira de um atleta. No meu caso, posso ter de reduzir bastante o número de torneios que jogo por ano e isso reduz as probabilidades de ter mais sucesso.

Nunca fui pessoa de fazer pedidos. Sempre pensei que o trabalho iria falar por si. Acho que em 2022 foi o ano que trabalhei mais e melhor. Tive algumas recompensas a nível de resultados e muitas ajudas que me permitiram viajar e fazer o que mais gosto.

Com o meu trabalho e o do meu treinador (Filipe Brandão) conseguimos ter desconto nas minhas raquetas quando estive no Brasil e comprei-as lá. Fiz um acordo com o preparador físico, que estava comigo presencialmente duas vezes por semanas e enviava-me planos para o resto da semana.

A meio do ano deixei de pagar treinos e, por ser atleta de seleção e com a ajuda da federação, pude usufruir dos campos e do ginásio sem custos. Tive sempre a possibilidade de ter wild cards para os torneios, o que me permite ganhar dinheiro mesmo perdendo na primeira ronda.

Na maioria dos torneios internacionais que joguei fora de Portugal conseguimos ter ajudas de pessoas conhecidas com a estadia. Como o meu treinador tem uma máquina de encordoar, nos torneios nunca precisei de pagar 15€ de encordoação. Penso que tive sorte, mas, no fundo, as recompensas apareceram pelo nosso trabalho diário e por sermos boas pessoas. Pelo menos eu quero acreditar nisso.

Agora a grande questão coloca-se: “Será que eu vou conseguir voltar?”

Vou perder o ranking que conquistei em 2022, pelo menos em singulares porque só posso congelar o ranking se for top 750. Portanto vou ter de começar do zero. Por ter pessoas tão boas à minha volta nesta recuperação quero muito voltar a jogar para lhes dar uma pequena retribuição do que investiram em mim neste período. O meu grande objetivo é voltar para poder agradecer tudo o que fizeram por mim, para agradecer terem-me acolhido no Lisboa Racket Centre e terem-me tirado de um buraco grande. Se vou conseguir? Não sei. Quero tentar descobrir e ver com os meus olhos se é possível, mas se for por falta de capacidade financeira para suportar o circuito vou ficar muito triste. Tem de haver uma mudança no desporto em geral e eu gostava de contribuir para essa mudança. Não gostava de ser mais uma atleta que teve de acabar a carreira por falta de apoios.

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