Wimbledon teria deixado William Shakespeare orgulhoso

As referências mais antigas que se conhecem sobre o ténis remetem à antiguidade grega e romana, período em que era praticado um jogo de bola com a palma da mão que foi sendo aperfeiçoado até se tornar no célebre jeu de paume, inventado em França no século XI e tornado popular graças à corte francesa durante o reinado de Luís X (1314-16). Só depois conheceu o mesmo sucesso em Inglaterra, nomeadamente durante os reinados de Henrique V (1413-1422) e Henrique VIII (1509-47), onde o grito “tenez” (no sentido de “aqui vai”) e o jogo evoluiu até se transformar em tennis, a designação tornada universal com ligeiras adaptações.

Os monarcas ingleses eram apaixonados por ténis, ou melhor, por royal tennis. E essa paixão transitou para William Shakespeare (1564-1613), o maior escritor da língua inglesa, que em várias obras deu destaque ao desporto da moda, numa delas sugerindo, inclusive, que o rei estaria mais interessado em jogar do que governar.

Agora, os tempos do royal tennis estão há muito ultrapassados, mas o mais sagrado e mítico dos torneios continua a ser um bastião do tradicionalismo, assegurando ano após ano que nem toda a história pode ser deixada para trás a favor da modernização.

Ao mesmo tempo que o faz, o torneio de Wimbledon continua a eternizar na memória de apaixonados e até meros transeuntes as mais dramáticas e épicas das batalhas, 500 anos passados tão dignas dos melhores dramas, das melhores tragédias e até das melhores comédias desse génio que foi Shakespeare.

Wimbledon é não só o torneio mais antigo do mundo, como também o torneio dos torneios. Seria preciso reencarnar Shakespeare para lhe fazer a devida justiça em palavras, mas aquela cimeira que todos os anos ocorre ao longo de 15 dias no All England Club continua a ser a mais especial de todas as que decorrem durante a época. Por muitos que sejam os progressos feitos pelos seus pares, por muitas que sejam as histórias que surgem noutros locais, por muito que se combata a tradição.

“Primus Inter Pares” é uma expressão muito utilizada pelo meu colega Miguel Seabra e que assenta que nem uma luva a Wimbledon, o primeiro entre iguais.

Alcaraz vs. Djokovic (2023) foi mais um capítulo que reforçou o legado de dramas escritos na relva sagrada, o espanhol e o sérvio a encaixarem durante 4h34 que resultaram numa passagem de testemunho recheada de simbolismo e, também por isso, tão marcante.

Borg vs. McEnroe (1980) e Nadal vs. Federer (2008) são indiscutivelmente os dois melhores encontros que Wimbledon proporcionou ao longo dos seus 146 anos de história e provavelmente os dois melhores da história de um desporto secular, vários furos acima do que este domingo se desenrolou.

Mas o peso histórico da final ganha pelo espanhol ao sérvio encarregar-se-á de lhe dar o devido lugar de destaque entre os encontros mais memoráveis, à altura dos Murray vs. Djokovic (2013) — que fez do britânico o primeiro campeão caseiro desde 1936 — e Djokovic vs. Federer (2019), uma final que tal como a deste ano nem sempre contou com momentos de brilhantismo, mas que se tornou na mais longa da história do torneio apesar de ter sido a primeira a contar com um tie-break no set decisivo, tudo isto antes de ter sorrido ao sérvio de forma épica com dois match points salvos pelo meio. Federer vs. Roddick (2009) não pode ficar de fora desta segunda lista, afinal tornou-se na decisão com o último set mais longo da história dos torneios do Grand Slam.

Mas também aqui está o exemplo de que mesmo um curioso e estudioso, se nascido umas décadas depois, pode deixar para trás, sem malícia, tantos outros duelos. E Ivanisevic vs. Rafter (2001), a People’s Monday, aconteceu já neste século… (não, não estou a esquecer-me do Federer vs. Sampras que se desenrolou nesse mesmo ano, mas para este exercício optei por apenas recorrer a finais)

Esta pseudo-viagem pela estrada das memórias terá sempre uma boa dose de subjetividade, ao contrário da importância de Shakespeare ou do peso histórico de Wimbledon.

Afinal, costumava dizer-se que um campeão de Wimbledon tinha a situação financeira resolvida para o resto da vida e ainda direito a um lugar na eternidade — afirmações que se mantêm apesar de os homens terem, neste último capítulo, mais motivos de celebração.

Essa é uma conversa para outro dia, não num tímido parágrafo entre tantos outros e sim numa reflexão própria, mas adianto dois assuntos para reflexão: quão diferente seria se, por vezes, fossem elas a jogar no prime time de domingo e não no sábado? E não seria o formato à melhor de cinco sets um bom remédio para amenizar o nervosismo que mancha tantas decisões?

De volta ao que Wimbledon tem de épico, houve neste braço de ferro entre Alcaraz e Djokovic algo de diferente. Algo tão óbvio quanto impercetível: a diferença de idades. Ao contrário da maioria das batalhas dramáticas e memoráveis de anos anteriores (Federer vs. Sampras em 2001 foi outra exceção, mas uma vez mais: não se tratou de uma final), esta não foi protagonizada por dois jogadores da mesma geração, mas sim por um jogador na fase final da carreira e outro ainda a dar os primeiros passos ao mais alto nível, os dois sintonizados na mesma missão de almejar à perfeição.

Um com 20 (parece mentira), o outro com 36 (parece mentira), espanhol e sérvio emaranharam-se num enredo cativante que transcendeu a dimensão de uma simples final — se é que as há em Wimbledon — pela importância histórica que a rodeava.

Habituámo-nos, nos últimos anos, a normalizar o anormal.

Mas aqui, garanto-vos, não se trata sequer de uma questão de ser ou não ser: nada há de normal no que Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic fizeram nas últimas duas décadas, assim como nada há de normal no que Carlos Alcaraz já fez e promete continuar a fazer quando ainda tem 20 anos.

William Shakespeare faria destas peças eternas, Wimbledon faz deles eternos campeões.

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